terça-feira, 29 de julho de 2014

Um viva aos tios e tias: uma homenagem a uma querida que se foi

Hoje faleceu a tia mais querida que eu poderia ter. Eu não vou compartilhar meus lamentos e minha profunda tristeza com vocês, pois eu quero manter aqui o clima de alegria e espontaneidade que sempre esteve presente na vida de minha amada tia Rose.

Aos 18 anos, ela, nascida em SP, decidiu deixar família e as poucas coisas que tinha de lado e se mandou sozinha para a Bahia, pegando carona. Foi curtir a vida, se jogou no mundo, errou muito, acertou em cheio na felicidade a cada gole de cerveja, a cada trago de cigarro, a cada passo transviado, a cada noitada à beira da praia. Foi paixão a primeira vista quando chegou a Salvador. Se fez baiana no viver e de lá não saiu mais, apenas para visitas que se esticavam por mais ou menos tempo quando vinha ao sudeste resgatar o contato familiar. Por conta disso, garanti inúmeras, incontáveis boas lembranças com essa pessoa que alguém comum diria que era meio maluca.

Na infância, apesar de pouco presente, lembro de visitas acaloradas e com uma risada alta, contagiante, que não cabia na casa. Nenhuma repreensão, nenhuma voz de comando, nenhuma bronca. Com a tia Rose eram só risadas, brincadeiras, imaginação levada a sério, alegria, alegria. Passei algumas das melhores férias que tive na infância e adolescência na casa dela em Salvador, e pude ver, conforme fui crescendo, que a vida divertida e sempre tão risonha dela também tinha seus dias de cão, suas dificuldades e confusões. A grana era curta, a saúde foi se debilitando, mas a alegria contagiante sempre esteve lá, impassível. Dela, recebia as declarações de amor mais gostosas que já recebi de um parente. Ela me via, abria bem os braços e falava bem alto: "meu sobrinho lindo, como eu te amo!", e em seguida me enchia de cheiros e beijos. Foi a pessoa com quem mais troquei cartas até hoje, e talvez ela nem saiba o quanto isso me ajudou a pegar gosto pela escrita, por contar histórias com caneta e papel nas mãos, já que desde criança eu sempre adorei responder as cartas deliciosas que ela escrevia, os cartões-postais mostrando a Bahia que ela tanto amou, falando sobre os lugares que ela "tinha que nos mostrar". Que legal foi ter você presente, tia!


Tia Cacá e as crianças
Tenho a enorme felicidade em ver que meus filhos tem essa figura presente, brincalhona, disposta e muito carinhosa em minha irmã. A Camila é uma tia de mão cheia, de amor incondicional, de brincadeiras sem fim, de uma conexão com as crianças que não se pode ensinar. Elas simplesmente se amam e se dão muito bem. Sem contar que o Tito viveu algumas semanas na presença tão gostosa de Rose, que ele adorou a partir do primeiro dia e passou a grudar nela, tal como eu, minha irmã e meus primos fazíamos quando pequenos com a nossa tia.

Foi muito gostoso tê-la como referência de uma pessoa "fora do padrão", pois ela me mostrava um lado positivo de ver as coisas que é difícil encontrar em alguém. E, quando há amor envolvido, é melhor ainda. Ela foi a primeira pessoa adulta que me lembro de ter tido conversas sérias a respeito da vida, sempre ouvidas com atenção, respeito, olhos curiosos e finalizadas com um abraço quente e demorado. Tito aproveitou pouco, mas muito bem a passagem curta dessa pessoa especial em sua vida, e tem pela frente, junto com a Maya, Maitê e o novo bebê que está para chegar, dias de bastante felicidade ao lado da tia Camila, ou Tia Cacá, como ela prefere.

Que toda criança, adolescente e adulto tenha a possibilidade de ter uma pessoa assim em suas vidas.

Apesar da tristeza enorme em perder uma figura tão querida para um câncer terminal, o que fica mais presente em mim hoje são lágrimas de gratidão pelas coisas que vi, vivi e aprendi com minha tia. É óbvio que estou triste, mas a alegria dela fala mais alto na hora de escrever essa pequena e sincera homenagem.


Obrigado por tudo, tia. Descanse em paz.

terça-feira, 22 de julho de 2014

O que aprendi com um divórcio a respeito da minha relação com meus filhos

Às vezes, a gente só dá valor a alguma coisa depois de perdê-la. Sim, eu estou de volta trazendo um enorme clichê aqui pra vocês. Explico: há mais ou menos um ano me divorciei e, obviamente, passei por um longo processo de estranhamento da nova rotina sem a convivência diária com quem andei lado a lado durante sete anos, mas, num nível infinitamente maior e mais intenso, sofri e chorei por não mais dormir e acordar ao lado dos meus filhos, não estar mais em contato tão próximo deles, não sentir seus cheiros e ouvir suas frases desconexas ao perambularem pela casa, não poder pegar no colo e por no sling para acalantar com tanta frequência quando se machucam... Eu ainda faço tudo isso, mas a falta da convivência intensa e diária é bem pesada.

Um dos saldos disso tudo foi: nunca chorei tanto.  Nunca havia sentido essa dor que eu nem tenho pretensão de conseguir descrever. E foi bom chorar tanto assim, transbordar, me entregar a um fluxo que meu corpo ou minha mente estavam negando há tanto tempo. Contudo, passados os meses iniciais e mais difíceis, quando só de dar "oi" e "tchau" ao Tito e a Maya eu já chorava de soluçar, veio uma dor diferente, uma nostalgia um tanto quanto indigesta e que me levou a uma tomada de decisão: ou eu encarava isso como aprendizado, respeitando o que meu corpo estava a me dizer; ou eu ignorava isso e responsabilizava o infortúnio do destino por estar longe das crianças, não assumindo a minha responsabilidade ao optar pela separação. Eu escolhi a primeira opção e foquei na dor que diariamente martelava dentro do peito: reconhecer que deixei preciosos momentos com meus filhos passar porque em alguns momentos da nossa jornada eu fui impaciente com eles, que nem sempre dava a devida atenção a nossa relação ou estava disposto a me conectar em níveis mais profundos com as crianças.

Lembrei das vezes em que gritei, chantageei, ignorei, ameacei, bufei, fiquei de saco cheio por ter que novamente acordar às cinco da manhã pra ficar com o bebê que não quer dormir. Há uma expressão em inglês que reflete melhor que em nossa língua, em minha opinião, o sentimento que me bateu nessa fase de introspecção: I was taking it from granted. E é realmente isso: a gente dá mesmo alguns vacilos por saber que a criança vai estar lá amanhã, e depois, e depois, mas, se não tomar cuidado, passa a achar tudo um saco e a querer terceirizar coisas para ter um pouco mais de tempo livre para si. Se dedicar às crianças com qualidade e viver nesse sistema capitalista opressor e competitivo é desgastante. Sei que muitas mães e pais passam por isso. É normal e até compreensível, dado o nosso histórico social de como se desenrolam as interações entre crianças e adultos em nossa vida moderna, cuja pedra secular é o "eu mando, você obedece".

No entanto, vale a ressalva de que nem tudo é estanque e absoluto, e mudanças podem ser feitas e são sempre bem-vindas. Nunca a interação com meus filhos foi na base da negligência, do dessabor, da falta de paciência, da voz de comando. Mas era, em boa parte do tempo, uma relação baseada no "apesar de". Apesar de ser um bom pai, eu às vezes gritava e era impaciente. Apesar de estar sempre fisicamente presente e brincando, nem sempre eu me deixava conectar real e profundamente com as crianças. Apesar de acordar cedo e acalantar todos os dias no sling, normalmente eu reclamava de ter o meu sono interrompido e até privado. Lhe soa familiar?

O término do meu casamento foi fundamental para que eu engolisse a seco essas verdades que eu mesmo escolhi me dizer. E, tão importante quanto, percebesse outra verdade fundamental: não existe perfeição na relação com as pessoas, talvez em especial com as crianças. Ou, que a perfeição passe pela simplicidade de ser o mais sincero possível consigo e com a criança, por mais que isso traga à tona algo que não gostaríamos de admitir ou vivenciar. Quando o processo é consciente e você assume a responsabilidade pelos teus atos e pela tua realidade, até os deslizes eventuais e os momentos confusos passam a ser mais leves.

Há de se respeitar o quão mágico é ter uma criança por perto e sair do piloto-automático para que essa leveza chegue. Para isso, acredito que seja melhor confiar numa conexão profunda com a criança e abandonar certas crenças e neuras. Abrir mão do orgulho e da neura pela disciplina quando o filho, imponente e impassível, continua a fazer algo que você não quer, por exemplo. É claro que há várias situações em que não é possível deixar a criança fazer o que bem entende, mas, antes de tomar uma decisão passional que normalmente tenderá para o tolhimento da criança, reflita seriamente sobre essas perguntas: você realmente precisa dizer tantos "nãos" a ela? A disciplina realmente precisa ser uma esquete militar em que o adulto constantemente tem que dar lições de moral e bons costumes à criança, caso contrário ela nunca vai se controlar ou respeitar o seu entorno? Disciplina é realmente mais importante que respeito? E o respeito, é conquistado apenas pela intimidação e pelo medo?

Acredite nisso: crianças não querem nos manipular. Se confiarmos na pureza delas e na franqueza de nossa relação, a tendência é que tudo se ajeite naturalmente, sem traumas para nenhum dos lados, e a convivência passe a ser mais prazerosa. Quando a gente quebra esses estigmas de que "criança precisa disso, criança precisa daquilo, e o adulto é quem tem de ensinar e prover", a gente sai do piloto-automático. Tira-se o cabresto e nossa visão fica mais sensível ao que a criança realmente quer dizer e transmitir, em suas diversas linguagens. Conversas francas, respeitosas e com olhos nos olhos são melhores e mais frutíferas que levar consigo sempre o peso de que é o adulto o responsável por tudo que a criança aprende e absorve. A criança é curiosa, espontânea, inteligente, ativa, intuitiva e absorve sozinha muito mais do que conseguimos reconhecer. Queremos o mérito pra gente, não confiamos na capacidade e na potência da criança.

Quando olhei para tudo isso que gritou dentro de mim, senti um profundo pesar por ter deixado escapar tantos momentos preciosos com o Tito e a Maya quando a gente morava junto. Na maior parte do tempo, a relação era super rica e prazerosa, leve, fluida. Mas eu sou o primeiro a reconhecer que já investi energia demais tentando impor coisas às crianças, e naturalmente me irritando com isso. Ou apenas de saco cheio por estar cansado e não poder voltar a deitar para dormir mais um pouco.

Dar esses passos foi essencial para que eu me entregasse ao momento, em qualquer situação que se apresente, quando estou com as crianças. A interação é muito mais calma e natural, as conversas são mais respeitosas e a gente passa a se entender muito melhor sem a necessidade de palavras. Precisamos voltar a desenvolver a nossa intuição, pois a criança é altamente perceptiva e sensível. Como exemplo, nos meses que se seguiram o divórcio, Tito, que hoje tem quase cinco anos, passou a se distanciar de mim e a ficar muito arredio com minhas tentativas de acalmá-lo quando ele se irritava com algo. Eu era a última opção para ele pedir colo e apoio. Num dia em que ele estava dormindo em casa eu o levei para tomar banho e ele, impaciente, começou a chorar, me empurrar, me chutar. Eu chorei, me agachei no chão e perguntei o que aconteceu entre a gente para que a nossa relação ficasse assim... "Eu fiz alguma coisa, filho? Lembra das inúmeras coisas que a gente já fez junto, das brincadeiras, das sonecas juntos, dos passeios, dos abraços e beijos que você sempre me dava? O papai fez alguma coisa, filho? Pode me falar porque eu quero corrigir, se fiz algo de errado". E a resposta dele foi cair num choro muito sentido e simplesmente dizer "Eu não sei... eu esqueci...". Nos abraçamos e eu pedi desculpas pelo que ele não lembra que eu fiz. Tomamos banho juntos, conversamos com respeito e atenção. No mesmo dia ele fez uma escolha que há muitas semanas não fazia: "hoje eu vou dormir com você".

O desfeche dessa noite certamente seria outro se eu continuasse achando um saco o fato de ter uma criança irritada e "fora do controle" ali, enquanto eu estou cansado depois de mais um dia de trabalho.

Fica mais fácil quando a gente respeita genuinamente a criança e se entrega à relação, sem neuras, sem pretensão de ensinar e controlar tudo. Prometo.