Faço parte de uma lista de pais que se preocupam com "boas práticas" de paternagem e com uma relação mais amistosa entre pais, filhos, família, humanização, parto, etc.
Ao levantar uma saudável discussão a respeito do tema "Desescolarização" e de ser acusado de irresponsável, leviano e pouco solidário, respondi com o email que reproduzo abaixo, em forma de desabafo e esclarecimento.
Tomei a liberdade de trocar os nomes envolvidos por XXXXX e YYYYY.
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oi, pessoal.
eu saí um pouco da discussão pra ver a reação dos demais, pra ser mais ouvinte.
não "mordi" de propósito algumas iscas lançadas pelo XXXXX e pelo YYYYY, mas vamos a elas agora.
XXXXX, se eu colocasse meu filho em alguma escola particular (como muitos aqui da lista), eu seria tachado de "pouco solidário, quase irresponsável"? Eu acredito que não, apesar de a matrícula de um filho numa escola, e a escolha da escola em si ser uma decisão particular e quase sempre nada solidária... (só o fato de escolher uma escola particular, matricular o filho e esquecer o "resto" já é super pouco solidário, mas eu certamente não seria tachado disso se assim o fizesse, não é mesmo?)
Você chegou a comentar que a desescolarização faz sentido para aqueles que são "herdeiros de bibliotecas", "filhos de gente culta".
Mas, por que essa crença?
Eu vou tomar a liberdade de responder o que eu acho: é o problema do pensamento escolarizado. A noção errônea de que a relação "ensino-aprendizado" é algo totalmente linear nos levou a crer que a criança inserida num contexto culto e letrado será também culta e letrada, e, o pior, que só essa criança é que vai conseguir ser culta, inteligente e letrada, a não ser que ela, no caso de ser pobre e desfavorecida, estude muito e batalhe por conta própria a dura escalada social.
Esse pensamento é um dos mais danosos à sociedade, à coletividade, pois ele afirma um preconceito de que só os filhos de pais abastados conseguiriam absorver cultura e desenvolver inteligência fora do ambiente escolar.
Só para citar um exemplo, todos sabemos a história do Machado de Assis, um negro pobre, porém, autodidata que se tornou o maior escritor do Brasil.
Sim, ele pode ser considerado uma exceção, da mesma forma que o Chico Buarque também o é, pois quantos e quantos filhos de burgueses como o Chico nós vemos por aí, mas que, ao contrário dele, não são as melhores representações de um ser culto e inteligente? Abastamento não pode ser relacionado tão diretamente assim à aprendizado e à cultura.
No mesmo email, foi citado que não somos a Espanha, Portugal, ou a Dinamarca.
É mais um exemplo do nosso preconceito e da nossa mentalidade escolarizada de que, para começar a agir de maneira mais independente, revolucionária, orgânica e guiada pelo e para o potencial só serve para os abastados... Por que um país em desenvolvimento ou até um país subdesenvolvido não pode falar em desescolarização? Por que não podemos nos livrar das amarras rançosas das instituições ultrapassadas e passar a definir um futuro que se aplique melhor ao nosso paradigma, à nossa realidade?
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Desescolarização é aprendizado
natural em ação! |
A gente acredita que o aprendizado é algo linear e que depende de um esforço externo para que ele exista, mas isso não é verdade.
Se déssemos vazão aos inúmeros talentos e aptidões que as crianças mostram desde cedo, nada precisaria ser ditado por currículos, por "mestres", por instituições. A criança, se incentivada e apoiada, consegue traçar seu caminho em busca da exploração do seu potencial. No entanto, o pensamento escolarizado e rígido faz justamente o oposto: a afasta mais e mais das suas reais aptidões, para que se concentrem, durante horas do seu dia, em coisas que todos os demais também estão vendo, só porque isso foi designado pelo "mercado". E assim começamos a matar a sua individualidade em prol do "coletivo". Só que esquecemos que esse coletivo foi definido lá atrás pelos grandes patrões, que impuseram suas vontades na grade curricular escolar e acharam que seria muito melhor a criança aprender a fazer contas do que aprender a dançar (só pra dar um exemplo), e a gente continua repetindo isso até hoje.
Não é essa coletividade que eu quero.
O YYYYY comentou também algumas coisas e eu vou ser mais objetivo pra não me estender muito:
Foi dito que é "impossível aprender sozinho". Essa afirmação é novamente ditada por conta dos nossos limites e restrições relacionados à mentalidade muito escolarizada. Dizer que é impossível aprender sozinho quer dizer que nunca ninguém será capaz de chegar a uma conclusão sozinho! Que nunca nenhuma criança, por exemplo, vai aprender a escrever uma língua, uma palavra ou uma letra sequer sozinha, só por observação ou pela simples inserção social. Que a música e outras formas de artes não podem ser coisas inatas.
Soa absurdo, não?
E é.
Dentre várias coisas ditas, acho válido desmistificar algumas:
- O unschooling não é contra ao ensino às crianças! Ele é contra ao ensino pré-determinado sem o seu consentimento e sem a sua demanda, como, por exemplo, um currículo escolar, em que a criança simplesmente é obrigada a aprender tal disciplina, mesmo que ela não esteja pronta ou curiosa o suficiente para ver aquilo naquele determinado momento;
- Ao praticar o unschooling, os pais ou tutores não vão precisar "dar aulas" para as crianças. Isso seria substituir a escola e levar o pensamento escolarizado para dentro de casa. Seria homeschooling, ou seja, competir com a escola (coisa que eu não quero). Na desescolarização você não precisa de regras ou pré-definições do que ensinar, do que a criança vai aprender. Todos juntos, tutores e crianças, vão descobrindo o caminho e dando alimento à sua curiosidade de acordo com o desenvolvimento dela, da criança.
- Não sou contra os professores. A figura do professor é super importante, mas a comparação feita com os mestres de milhares de anos atrás com os professores da atualidade é indevida, pois antigamente um jovem passava um largo período acompanhando seu mestre para aprender um afazer, uma especialidade, mas normalmente isso era feito por escolha do aprendiz. Não havia um "currículo medieval" que obrigava todo jovem a aprender alquimia, jardinagem, metalurgia. Cada um tinha a liberdade de escolher qual ofício seguir, qual especialidade aprender. Essa é a grande diferença entre os mestres de antes e os de agora.
- Universidade: o item anterior leva a um ponto importante, que é o ambiente acadêmico. Apesar de ser contra a escola nas primeiras idades, quem é a favor do unschooling é super a favor da universidade, pois, como no exemplo de um mestre alquimista, o adulto escolhe em que se especializar, e para isso busca profissionais dedicados à sua área de interesse. Na escolas primárias e secundárias isso não ocorre: o jovem é obrigado a passar por coisas que talvez ele não queira ou não esteja pronto para ver, sem o seu consentimento.
- Necessidade de aprendizado: isso parte da criança e deve ser sempre ditado por ela, não pela escola ou qualquer outra instituição.
- Medo da TV como educadora: no email do YYYYY e, mais implicitamente, em outros eu vi esse receio de que, se deixar os filhos longe da escola, a TV e a mídia influenciarão negativamente na sua educação e nos seus valores. Há duas coisas a encarar com seriedade aqui: 1. mesmo não vendo TV, só pelo fato de frequentar uma escola seus filhos estarão em contato diário e exaustivo com as coisas negativas da TV, dos seus programas e dos seus comerciais, uma vez que os seus colegas de turma podem estar inseridos num contexto familiar que você desaprova, e isso vai respingar em todas as criança do grupo, invariavelmente, como desejo descontrolado por consumo, violência (esportes de luta e programas de violência que os colegas de turma podem ver), preconceito, ódio, etc; 2. Vocês podem desligar a TV. Em casa a gente não assiste a NENHUM programa de TV há 3 anos. Absolutamente nenhum. É possível fazer isso, mas é uma questão de escolha dos pais...
Por fim, acho importante a gente discutir desescolarização lembrando que a criança é curiosa por natureza e ela gosta de aprender. O grande mal da escola é que ela força a criança a aprender de forma padronizada (a mesma matéria para todo mundo, ignorando as escolhas e os interesses pessoais) e no mesmo momento (pense no quão chato e frustrante é para uma criança ter que lidar com números, por exemplo, quando ela simplesmente não está pronta para isso ainda).