terça-feira, 6 de setembro de 2011

o medo da desescolarização


Faço parte de uma lista de pais que se preocupam com "boas práticas" de paternagem e com uma relação mais amistosa entre pais, filhos, família, humanização, parto, etc.
Ao levantar uma saudável discussão a respeito do tema "Desescolarização" e de ser acusado de irresponsável, leviano e pouco solidário, respondi com o email que reproduzo abaixo, em forma de desabafo e esclarecimento.
Tomei a liberdade de trocar os nomes envolvidos por XXXXX e YYYYY.
____________________________
oi, pessoal.
eu saí um pouco da discussão pra ver a reação dos demais, pra ser mais ouvinte.
não "mordi" de propósito algumas iscas lançadas pelo XXXXX e pelo YYYYY, mas vamos a elas agora.

XXXXX, se eu colocasse meu filho em alguma escola particular (como muitos aqui da lista), eu seria tachado de "pouco solidário, quase irresponsável"? Eu acredito que não, apesar de a matrícula de um filho numa escola, e a escolha da escola em si ser uma decisão particular e quase sempre nada solidária... (só o fato de escolher uma escola particular, matricular o filho e esquecer o "resto" já é super pouco solidário, mas eu certamente não seria tachado disso se assim o fizesse, não é mesmo?)

Você chegou a comentar que a desescolarização faz sentido para aqueles que são "herdeiros de bibliotecas", "filhos de gente culta".
Mas, por que essa crença?
Eu vou tomar a liberdade de responder o que eu acho: é o problema do pensamento escolarizado. A noção errônea de que a relação "ensino-aprendizado" é algo totalmente linear nos levou a crer que a criança inserida num contexto culto e letrado será também culta e letrada, e, o pior, que só essa criança é que vai conseguir ser culta, inteligente e letrada, a não ser que ela, no caso de ser pobre e desfavorecida, estude muito e batalhe por conta própria a dura escalada social.

Esse pensamento é um dos mais danosos à sociedade, à coletividade, pois ele afirma um preconceito de que só os filhos de pais abastados conseguiriam absorver cultura e desenvolver inteligência fora do ambiente escolar.
Só para citar um exemplo, todos sabemos a história do Machado de Assis, um negro pobre, porém, autodidata que se tornou o maior escritor do Brasil.
Sim, ele pode ser considerado uma exceção, da mesma forma que o Chico Buarque também o é, pois quantos e quantos filhos de burgueses como o Chico nós vemos por aí, mas que, ao contrário dele,  não são as melhores representações de um ser culto e inteligente? Abastamento não pode ser relacionado tão diretamente assim à aprendizado e à cultura.

No mesmo email, foi citado que não somos a Espanha, Portugal, ou a Dinamarca.
É mais um exemplo do nosso preconceito e da nossa mentalidade escolarizada de que, para começar a agir de maneira mais independente, revolucionária, orgânica e guiada pelo e para o potencial só serve para os abastados... Por que um país em desenvolvimento ou até um país subdesenvolvido não pode falar em desescolarização? Por que não podemos nos livrar das amarras rançosas das instituições ultrapassadas e passar a definir um futuro que se aplique melhor ao nosso paradigma, à nossa realidade?

Desescolarização é aprendizado
natural em ação!
A gente acredita que o aprendizado é algo linear e que depende de um esforço externo para que ele exista, mas isso não é verdade.
Se déssemos vazão aos inúmeros talentos e aptidões que as crianças mostram desde cedo, nada precisaria ser ditado por currículos, por "mestres", por instituições. A criança, se incentivada e apoiada, consegue traçar seu caminho em busca da exploração do seu potencial. No entanto, o pensamento escolarizado e rígido faz justamente o oposto: a afasta mais e mais das suas reais aptidões, para que se concentrem, durante horas do seu dia, em coisas que todos os demais também estão vendo, só porque isso foi designado pelo "mercado". E assim começamos a matar a sua individualidade em prol do "coletivo". Só que esquecemos que esse coletivo foi definido lá atrás pelos grandes patrões, que impuseram suas vontades na grade curricular escolar e acharam que seria muito melhor a criança aprender a fazer contas do que aprender a dançar (só pra dar um exemplo), e a gente continua repetindo isso até hoje.

Não é essa coletividade que eu quero.

O YYYYY comentou também algumas coisas e eu vou ser mais objetivo pra não me estender muito:
Foi dito que é "impossível aprender sozinho". Essa afirmação é novamente ditada por conta dos nossos limites e restrições relacionados à mentalidade muito escolarizada. Dizer que é impossível aprender sozinho quer dizer que nunca ninguém será capaz de chegar a uma conclusão sozinho! Que nunca nenhuma criança, por exemplo, vai aprender a escrever uma língua, uma palavra ou uma letra sequer sozinha, só por observação ou pela simples inserção social. Que a música e outras formas de artes não podem ser coisas inatas.
Soa absurdo, não?
E é.

Dentre várias coisas ditas, acho válido desmistificar algumas: 
  • O unschooling não é contra ao ensino às crianças! Ele é contra ao ensino pré-determinado sem o seu consentimento e sem a sua demanda, como, por exemplo, um currículo escolar, em que a criança simplesmente é obrigada a aprender tal disciplina, mesmo que ela não esteja pronta ou curiosa o suficiente para ver aquilo naquele determinado momento; 
  • Ao praticar o unschooling, os pais ou tutores não vão precisar "dar aulas" para as crianças. Isso seria substituir a escola e levar o pensamento escolarizado para dentro de casa. Seria homeschooling, ou seja, competir com a escola (coisa que eu não quero). Na desescolarização você não precisa de regras ou pré-definições do que ensinar, do que a criança vai aprender. Todos juntos, tutores e crianças, vão descobrindo o caminho e dando alimento à sua curiosidade de acordo com o desenvolvimento dela, da criança. 
  • Não sou contra os professores. A figura do professor é super importante, mas a comparação feita com os mestres de milhares de anos atrás com os professores da atualidade é indevida, pois antigamente um jovem passava um largo período acompanhando seu mestre para aprender um afazer, uma especialidade, mas normalmente isso era feito por escolha do aprendiz. Não havia um "currículo medieval" que obrigava todo jovem a aprender alquimia, jardinagem, metalurgia. Cada um tinha a liberdade de escolher qual ofício seguir, qual especialidade aprender. Essa é a grande diferença entre os mestres de antes e os de agora. 
  • Universidade: o item anterior leva a um ponto importante, que é o ambiente acadêmico. Apesar de ser contra a escola nas primeiras idades, quem é a favor do unschooling é super a favor da universidade, pois, como no exemplo de um mestre alquimista, o adulto escolhe em que se especializar, e para isso busca profissionais dedicados à sua área de interesse. Na escolas primárias e secundárias isso não ocorre: o jovem é obrigado a passar por coisas que talvez ele não queira ou não esteja pronto para ver, sem o seu consentimento. 
  • Necessidade de aprendizado: isso parte da criança e deve ser sempre ditado por ela, não pela escola ou qualquer outra instituição. 
  • Medo da TV como educadora: no email do YYYYY e, mais implicitamente, em outros eu vi esse receio de que, se deixar os filhos longe da escola, a TV e a mídia influenciarão negativamente na sua educação e nos seus valores. Há duas coisas a encarar com seriedade aqui: 1. mesmo não vendo TV, só pelo fato de frequentar uma escola seus filhos estarão em contato diário e exaustivo com as coisas negativas da TV, dos seus programas e dos seus comerciais, uma vez que os seus colegas de turma podem estar inseridos num contexto familiar que você desaprova, e isso vai respingar em todas as criança do grupo, invariavelmente, como desejo descontrolado por consumo, violência (esportes de luta e programas de violência que os colegas de turma podem ver), preconceito, ódio, etc; 2. Vocês podem desligar a TV. Em casa a gente não assiste a NENHUM programa de TV há 3 anos. Absolutamente nenhum. É possível fazer isso, mas é uma questão de escolha dos pais...
Por fim, acho importante a gente discutir desescolarização lembrando que a criança é curiosa por natureza e ela gosta de aprender. O grande mal da escola é que ela força a criança a aprender de forma padronizada (a mesma matéria para todo mundo, ignorando as escolhas e os interesses pessoais) e no mesmo momento (pense no quão chato e frustrante é para uma criança ter que lidar com números, por exemplo, quando ela simplesmente não está pronta para isso ainda).

terça-feira, 31 de maio de 2011

respeito às crianças, e não só aos mais velhos

"respeitar aos mais velhos é respeitar a si mesmo", certo?
faz sentido, é nobre, é moralmente correto, não há o que se discutir quanto a isso.
mas... por que não ouvimos falar com tanta frequência e entusiasmo sobre o respeito às crianças?
eu nunca ouvi falar sobre isso, a não ser em livros sobre educação não-ortodoxos (sobre unschooling, por exemplo).

a nossa sociedade não trata a criança com o devido respeito.
não damos espaço, tempo, poder de escolha, direito de se aborrecer, de errar, de se descontrolar, de regredir, de arriscar. pelo contrário, nós tolhemos e exigimos que a criança cresça logo e seja mais responsável pelos seus atos.
desde cedo exigimos que o filho controle as suas emoções, que tenha hora certa para brincar, para comer, para ouvir música, para sair, para tomar banho; que não grite, que não corra, que não se arrisque, que não suje, que não reclame....

no fim, acabamos por praticar o que talvez seja a pior forma de desrespeito, que é lhes tirar a liberdade.
no geral, impomos uma educação meio "tolerância zero" afim de evitar dores de cabeça e jogar as responsabilidades da vida logo no colo das crianças.
e cobramos os resultados em curto prazo também, é claro: ir pra escola cedo, aprender a falar e a ler logo, desfraldar o quanto antes, avisar o que quer assim que aprende a falar, parar de fazer xixi na cama, etc etc etc.

considero isso um desrespeito grave, uma vez que a criança perde, aos poucos, a sua natureza curiosa, instigante, questionadora, criativa e com imenso potencial.
como não respeitamos o seu tempo e as suas escolhas, ela passa a repetir os padrões que a gente espera e entra logo no esquema do qual fazemos parte.
e nada disso é novo, pelo contrário.
isso não é um mal da nossa sociedade corrida e cheia de disputas sociais, pois em épocas medievais representavam as crianças em pinturas como se elas fossem "mini-adultos", já que era assim que olhavam para ela.
não se reconhecia (ou não se compreendia) a infância: a partir do momento que deixasse de depender exclusivamente da mãe, a criança já ingressava no universo adulto.
hoje, não temos essa visão  - ou falta de visão - tão deturpada sobre a infância e já reconhecemos a sua importância como etapa do desenvolvimento humano, no entanto, a cobrança social para que a criança se torne precocemente responsável não morreu.

apesar de termos evoluído em relação a escolhas pessoais, saindo dos grandes grupos (mass) e passando para os nichos (class), em alguns casos ainda somos maníacos por padrões e vivemos nos comparando com os demais e fazendo as mesmas escolhas. acredito que esse seja o problema na hora de educar um filho ou uma filha: não temos coragem de fazer diferente, de questionar, de mudar o rumo, de não querer fazer parte.
a consequência é o que eu já disse acima: tiramos a liberdade de escolha e o ritmo dos nossos filhos, pois exigimos que toda criança siga uma linha de desenvolvimento parecida, padronizada.


porém, quando damos espaço para a criança se expressar livremente e fazer suas escolhas (sem pressões), nos deparamos com exemplos maravilhosos do potencial infantil, como esse aqui:


respeitar o idoso é uma questão de moral.
respeitar a criança (e o seu ritmo) é respeitar o futuro, é respeitar o direito de mudança, de escolha, de quebrar paradigmas que nós impomos.
para mim, o respeito mais importante é o respeito à criança.

terça-feira, 24 de maio de 2011

a lei do mais forte nos torna fracos

educação se faz com amor, não com dor.
contudo, hoje é fácil vivenciar ou presenciar alguma experiência baseada na lei do mais forte, onde alguém simplesmente desiste de qualquer tipo de argumento ou de negociação e apela para a força, para a violência, seja ela física ou moral (mine is bigger than yours).

socialmente, o problema maior é em como esse exemplo de atitude violenta é passado para as crianças, que muitas vezes vem (e sofrem com) seus próprios pais sendo brutos e amedrontadores, se esquecendo da razão e do carinho para resolver impasses.
bater não resolve o problema
"não quer tomar banho? vai apanhar", "não vai parar de fazer bagunça? vai apanhar", "não vai fazer o que te pedi? vou gritar com você até fazer você chorar, então".

essa abordagem acarreta em consequencias sérias para a criança, para a família e para a sociedade, direta e indiretamente.
acredito que a lei do mais forte, no geral, seja a responsável por boa parte da onda de violência que continua a assolar o país, as escolas, a vida em união, em comunidade. mas, veja bem, não estou dizendo que a criminalidade e a violência acontecem por conta única e exclusivamente da lei do mais forte, pois há variáveis bem mais sérias e complicadas envolvidas nesses temas; no entanto, acredito fortemente que os exemplos de uso de força e coerção aos quais submetemos diariamente as crianças só pioram o cenário.
a única mensagem clara que é passada com essa atitude é a de que vence o mais forte, de que usar a força física para conseguir o que se quer em detrimento da razão, da negociação, da conversa é algo válido e que podemos sempre abusar da nossa força contra alguém mais fraco.

vejo que muita gente, muitos pais e mães confundem educar com bater, educação com moral, aprendizado com obediência, respeito com disciplina e medo.
nada contra a disciplina, não pense isso. meu problema é com a rigidez na hora de educar, como se o ensino e o aprendizado seguissem um padrão lógico e sequêncial a ponto de você fazer uma linha de produção ou um esquema militar, rígido, firme, opressivo.
eu acredito na educação com amor, com tempo, com disposição, com conversa, com olho no olho ao invés da palmada, com pedidos sinceros no lugar dos gritos intimidantes.

afinal, independente da intenção que se tem com uma atitude violenta (seja ela física ou moral), o que fica é um exemplo grotesco e bárbaro de resolver os conflitos.
e, quanto mais continuarmos a pregar um esquema violento e opressivo de educação, mais teremos exemplos violentos e opressivos invadindo o nosso cotidiano.

educação e aprendizado são orgânicos, não mecânicos.
educação se faz com amor, não com dor.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

quando o benefício supera o risco

um ano e cinco meses. e ainda há tantos tombos pela frente...

o tito sempre foi muito agitado e isso o levou a "priorizar" a vontade em desenvolver mais e mais seu lado motor.
ao começar a engatinhar, ele já queria andar; ao começar a andar, ele já queria correr; ao começar a correr, as coisas complicaram bastante.

de repente descobrimos que ele subia em lugares perigosos para a sua idade e que depois não conseguia descer sozinho, mesmo que não tivesse alguém por perto.
ele simplesmente ia.
a nossa primeira reação foi se desesperar e correr para "salvá-lo".
a segunda e a terceira também.
e isso virou rotina pra gente, ficar de olho nele o tempo todo para que não aprontasse algo arriscado demais.

acontece que, com isso, estávamos deixando ele frustrado e irritado, e a consequência era ficarmos frustrados e irritados também, porque a todo momento ele quer subir em coisas, descer escadas, escalar o sofá, a cama, a estante, entrar no armário, em baixo do armário, em lugares onde ele não cabe, em lugares que não o suportariam...

a gente barrava ou ao menos freava o ritmo do seu desenvolvimento e aprendizado motor e cognitivo a favor da sua proteção física.
mas vimos num livro do john holt que, quando o benefício do aprendizado supera ou empata com o risco dela se machucar, vale a pena arriscar deixar a criança experimentar, avançar, descobrir ou tentar algo novo.

subindo sozinho uma escada por aí
bonito, mas e a coragem pra ver seu filho tão pequeno subir sozinho numa cadeira ou no sofá, correndo o risco de cair com a cara no chão? e pra convencer os familiares e os amigos que não somos malucos nem irresponsáveis e que isso na verdade está favorecendo o seu aprendizado, a sua confiança e a sua segurança na sua capacidade física?

obviamente, porém, há um limite entre o arriscado e o extremamente arriscado.
subir numa cadeira pode ser perigoso, mas dá pra encarar o risco.
subir na cadeira e depois na mesa de jantar já é elevar demais a aposta e, se algo der errado, o tombo literalmente é maior.
aos poucos a gente vai tentando fazê-lo entender esses limites e mostrando que outras coisas ao seu alcance ele pode fazer com toda confiança, pois passamos até a incentivá-lo.

nesse final de semana cansei de segurá-lo ao tentar descer ou subir uma escada feito trem desgovernado (ele segura na sua mão e joga o corpo todo pra frente, avançando os degraus ferozmente) e comecei a falar que não preciso mais ajudá-lo nisso, que ele consegue subir ou descer sozinho.

é claro que ele pode cair, mas acredito valer mais a pena ele ganhar mais confiança em si e saber que a gente vai encorajá-lo quando puder.


um ano e cinco meses. e ainda há tantos tombos pela frente...
mas em boa parte dos casos os benefícios superam (e muito) o risco.